segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Em busca do espiritual



A monja Ishin Havens nasceu e foi criada em Washington, nos Estados Unidos, onde tornou-se musicista profissional (trompista). Chegou a tocar com artistas como Tom Jobim e Burt Bacharach. Enquanto morava na Europa, em 1971, foi convidada a ingressar numa orquestra sinfônica brasileira. Gostou do Brasil e acabou fazendo do país o seu lar, naturalizando-se em 1984.
Sempre foi uma "buscadora espiritual". Leu o primeiro livro sobre o budismo em 1969, e se apaixonou pelos conceitos dessa filosofia oriental. Foi somente em 1996 que encontrou a Monja Coen, no Templo Busshinji, de São Paulo. Ali iniciou a prática formal do Zen. Não demorou muito tempo e percebeu que essa prática e a vida de templo budista era tudo que havia procurado na vida. Foi então que pediu e recebeu a ordenação monástica, se tornando monja-noviça, em 1999. No ano seguinte, foi para o Japão realizar treinamento monástico de quatro anos no Mosteiro Feminino de Nagoya. Depois passou um ano em treinamento avançado nos Estados Unidos e um ano como assistente da Monja Coen, em São Paulo, até receber autorização de liderar grupo e ensinar, em 2006.
Atualmente é orientadora espiritual da Sanga Soto Zen Budista Águas da Compaixão, onde desenvolve várias atividades e da Sanga Aikikai, da Associação RS Aikikai, em PortoAlegre, além de palestrante da Universidade Falada.

Qual a diferença básica do Zen Budismo para os outros tipos de budismo?
Todas as escolas Budistas transmitem os mesmos ensinamentos básicos. As diferenças surgem principalmente nas adaptações a cada país e cultura (roupa, por exemplo), na escolha dos textos que serão mais estudados, nos detalhes da interpretação “filosófica” e, principalmente, no estilo da prática. Enquanto que todas as escolas valorizam a meditação, o Zen coloca o Zazen (a meditação Zen) como o eixo central da prática. Ainda mais, o método do treinamento do zen baseia-se nas atividades do dia-a-dia, que podem ser consideradas a meditação vipasana do zen (meditação de plena atenção). No visão do Mestre Dogen, fundador da escola Soto Zen japonês, a prática correta é a iluminação. Por isso, é dada extrema importância à “prática correta” – a “forma” de se portar, os detalhes nos procedimentos, os atos corriqueiros como servir chá ou até atividades como trabalhar no computador, escrever cartas ou cozinhar – todos feitos com plena atenção, com a postura do “ser iluminado” e não do “ego condicionado”. A Iluminação é praticada na convivência com os outros praticantes, na prática dos preceitos nos relacionamentos, com a supervisão de um instrutor autorizado ou de um professor formado. As atividades “comuns” acabam sendo tão importantes para o desenvolvimento da prática zen quanto a meditação sentada. Enquanto que o estudo dos ensinamentos nunca pode ser dispensado, inicialmente é deixado para um segundo momento.
Conte um pouco de sua história, o que fazia antes do budismo e porque decidiu tornar-se monja?
Nasci e fui criada nos Estados Unidos, tornei-me musicista profissional (trompista). Enquanto morava na Europa, em 1971, fui convidada a ingressar numa orquestra sinfônica brasileira. Gostei do Brasil e acabei fazendo este país o meu lar, naturalizando-me brasileira, em 1984. Como musicista, cheguei também a tocar com artistas populares como Tom Jobim e Burt Bacharach, entre outros. Sempre fui uma “buscadora espiritual”. Li o meu primeiro livro sobre o Budismo em 1969 (e me apaixonei com os conceitos budistas), mas foi somente em 1996 que encontrei a Monja Coen no Templo Busshinji de São Paulo, onde iniciei a minha prática formal do Zen. Não demorou muito tempo que percebi que esta prática e a vida de templo budista era tudo que havia procurado na vida. Pedi, e recebi a ordenação monástica, me tornando monja-noviça em 1999. Fui para o Japão no ano seguinte fazer o meu treinamento monástico no Mosteiro Feminino de Nagoya. Treinei lá durante 4 anos, onde completei a etapa de Combate de Darma, com a Aoyama Roshi como professora de treinamento. Depois passei 1 ano fazendo o meu treinamento avançado nos Estados Unidos e 1 ano como assistente da Monja Coen em São Paulo, até receber autorização de liderar grupo e ensinar, em 2006.
Quais as atribuições de uma ordenação monástica?
Com a ordenação monástica, torna-se monge-noviço, um estudante do dharma. Essencialmente, o monge-noviço deve preocupar-se exclusivamente com o seu próprio treinamento – o cultivo da mente de Iluminação. Durante esta fase, o ideal seria que o monge-noviço não sofresse distrações ou carregasse responsabilidades de lidar com o público, pois isto pode interferir seriamente com a sua própria realização e desenvolvimento como monge. O monge-noviço precisa deixar de lado as idéias românticas (ou egóicas) de “servir ao Darma” ou “servir à comunidade” até mais tarde, depois de atingir um nível de realização na sua própria prática. Tradicionalmente, é somente depois do Combate de Darma que o aluno torna-se “monge-aprendiz” (mais ou menos equivalente a um diácono na igreja católica) e começa a assumir responsabilidades de orientar os mais novos, inicialmente como um “monitor”, até receber autorização de liderar grupos e ensinar. O treinamento é finalizado com a Transmissão de Dharma, quando torna-se um monge plenamente formado. No meu caso, estou na fase final de meu treinamento e vou receber a Transmissão de Dharma do Saikawa Roshi, Superintendente para a América do Sul de nossa tradição, ainda sem data prevista devido à construção do novo prédio do Templo Busshinji em São Paulo. Nos países asiáticos, o aluno ficaria praticando sob a supervisão direta e pessoal de seu professor, inclusive morando no templo do professor, durante uns 5 a 10 anos antes de receber autorização de liderar um grupo e nos Estados Unidos é bastante comum praticantes ficaram treinando com os seus professores durante 10 ou 20 anos antes de receber Transmissão do Darma e autorização de liderar grupos. Aqui no Brasil, porém, muitas cidades não têm pessoas com treinamento adequado disponíveis para liderar grupos de prática, devido à falta de monges plenamente formados e monges-aprendizes preparados para assumir estas responsabilidades. Assim, muitos monges-noviços se vêem obrigados a carregar responsabilidades muito pesadas, sozinhos e longes de seus professores, desde muito cedo no seu treinamento. Mesmo reconhecendo os possíveis erros destes monges-noviços, agradecemos o seu heroísmo, esforço e dedicação. Tudo isto faz parte do processo de transmissão dos ensinamentos de um país para outro e são pioneiros.
O que significa o termo psicologia budista?
O Mestre Dogen, fundador de nossa escola Soto Zen, disse: “Estudar o Caminho é estudar a si mesmo. Estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo é ser iluminado pelas dez mil coisas (pelo universo inteiro)”. Os ensinamentos clássicos do Budismo são divididos em três grupos: os sutras (“palestras” de Buda), o Vinaya, ou os preceitos e regras monásticas (a moralidade) e o Abhidharma (os ensinamentos superiores ou avançados). Este terceiro grupo dos ensinamentos, pelos critérios ocidentais, pode ser chamado de “psicologia budista” ou de “filosofia budista”, pois aborda a análise profunda da natureza da mente e suas funções (psicologia) e das leis universais que governam a vida (filosofia). Este “estudar a si mesmo”, que é a prática budista, vai muito além da psicologia ou filosofia ocidental. Consequentemente, precisamos evitar perder a verdadeira essência e objetivo da prática budista ao tentar encaixá-la nos nossos conceitos ocidentais.
Hoje em dia muitas pessoas - principalmente artistas, se intitulam budistas. O que, na verdade, é ser budista?
Em princípio, ser budista seria “tomar os refúgios budistas”. Mas o que é isto, na verdade? Aqui no Ocidente ainda há muita confusão sobre o que é ser “budista” e o que é ser “Zen”. Vou falar agora do Zen para depois generalizar para o budismo como um todo. Assim, com esta confusão, acaba-se criando novas variedades de “falso Zen’ para acrescentar à lista tradicional. Temos muitos grupos de “zen hippie”, “zen narcissista”, “zen bicho-grilo”, “zen auto-didata”, “zen clube-de-meditadores”, “zen da esquerda”, etc. em lugar de uma prática de profunda auto-transformação e libertação do sofrimento. A verdadeira prática do Zen e o verdadeiro “tomar os refúgios budistas” do budismo em geral ainda estão difíceis de serem encontrados, apesar de toda a boa vontade e sinceridade de esforço de muitas pessoas. O Budismo é muito novo aqui no Ocidente e a transmissão de sua essência é um processo demorado. Na China, por exemplo, levou 400 anos, e várias gerações de professores, para a tradição se estabelecer e clarificar sua identidade independente das tradições taoístas e confucionistas. Ainda mais, um professor só poderá ensinar aquilo que o aluno está disposto e preparado para aprender. Finalmente, na transmissão do oriente para o ocidente, as diferenças culturais e linguisticas são inimagináveis e traiçoeiramente sutis. Há uma grande tendência de interpretar – inconscientemente – os ensinamentos de acordo com os presupostos de nossa cultura e através do filtro judaico-cristão, talvez com toques de “nova era” ou outras ideologias, etc. em lugar de recebe-los com o coração-mente realmente aberto. Assim, frequentemente acontece que as pessoas caem em erros de compreensão, mesmo se esforçando sinceramente na sua prática.
Como especialista na costura de vestimentas budistas, poderia falar o que sua vestimenta significa? Todos os praticantes a usam? Ou apenas monges?
As vestimentas (manto de monge e “rakusu” do praticante leigo) simbolizam os votos do praticante de viver de acordo com os ensinamentos budistas e, podemos dizer, são “consagradas” nas cerimônias de transmissão destes votos (Transmissão dos Preceitos). Tradicionalmente, sempre que possível, o próprio praticante costura, à mão, o seu “rakusu” (um espécie de mini-manto) ou kesa (manto de monge). Paralelamente, temos a costura dos outros materiais, como as almofadas de sentar zazen (zafus), etc. Estas costuras fazem parte da prática de plena atenção e convivência com o grupo. Há uma expressão que descreve a prática da costura budista japonês: “hito hari, hito hari, kokoro o komete” – ponto por ponto, colocar o coração.
Desde quando está em Porto Alegre e como tem sido esta experiência?
Mudei-me para Porto Alegre em dezembro de 2006 e tem sido uma experiência de vida bastante agradável morar nesta cidade bem mais calma – a aborizada – que a cidade de São Paulo. Me sinto realizada na minha atividade com os meus grupos de prática (Sanga Águas da Compaixão, Sanga Aikikai e Sanga Energia Harmoniosa) e “não troco eles por nada no mundo”. Sou muito grata aos praticantes que sustentem este meu trabalho. Finalmente, não sou vegetariana e, por biotipo, necessito de carne – assim, a região Gaúcha é “um prato cheio” para mim...
Quais as características da Baika, a música budista?
Ainda muito pouco conhecida no ocidente, esta música valoriza a sinceridade do canto no contexto de grupo em lugar de se preocupar tanto com a qualidade da voz. É uma música suave, meditativa, que pede plena atenção e uma entrega à energia do grupo. É bastante cultivada no Japão, com os encontros nacionais literalmente enchendo um estádio de futebol – de praticantes cantando. Ano passado, recebemos em nossa Sanga um professor-mestre de Baika do Japão pela primeira vez em Porto Alegre, e devemos ter a visita de professores-mestres Japoneses todo ano, geralmente no mês de junho.
Qual a importância do estudo formal dos ensinamentos budistas?
Desde o início do budismo, é ensinado o “tripé” dos Três Treinamentos (trishiksha no sânscrito ou sangaku em japonês). São interdependentes entre si e o cultivo de somente um ou dois destes treinamentos independentemente do(s) outro(s) não permitirá o praticante chegar à Liberação do Sofrimento (vimukti no sânscrito), ou, em outras palavras, à Iluminação.
São estes:
1. Adishila-shiksha (o Treinamento na Conduta Superior, ou treinamento da moralidade). Este treinamento é feito com o estudo e prática de viver de acordo com dos preceitos budistas. No Zen, isto é treinando especialmente na convivência com os outros membros da Sanga, nas várias atividades do dia-a-dia.
2. Adisamadhi-shiksha (o Treinamento na Meditação Superior, ou treinamento da mente). Este treinamento é realizado com a prática da meditação, que deve ser supervisionado por um instrutor ou professor formado.
3. Adiprajnya-shiksha (o Treinamento da Sabedoria Superior). Este treinamento é cultivado com o estudo dos textos clássicos budistas, os textos de mestres modernos, as palestras dos professores e pode incluir debates para testar a compreensão.
No Zen, uma parte importante do treinamento baseia-se nas atividades corriqueiras do dia-a-dia, que devem ser realizadas em acordo com a Conduta Superior (os preceitos, com todas as sutilezas de compreensão), com a plena atenção da Meditação Superior e com a Sabedoria Superior. Como parte deste treinamento, vemos uma grande diferença nos papéis dos “roshis” (mestres zen) e dos instrutores (professores, ou professores júnior). Para simplificar, podemos dizer que o papel dos “roshis” (mestres zen) normalmente é de ensinar o “vazio” e dar o exemplo de “acolhimento de todos” e “equanimidade” budistas. Normalmente seriam assistidos no seu trabalho por “instrutores”, que ocupam uma função muito “inferior”, supervisionando o dia-a-dia da prática, com seus aspectos de “forma”, cerimonial e procedimentos. Aqui no Brasil, muitos grupos nem têm “instrutores” qualificados e, outras vezes, quando podem ter um “instrutor”, devido à falta de compreensão da natureza do método do treinamento zen por parte do grupo, este pode acabar sendo rejeitado, sendo visto como um “sargento”, um “inconveniente intragável”. Desta forma, por falta de “instrutores”, muitos grupos acabam não se consolidando como centros de prática zen budista corretamente cultivada... Um amigo meu descreve esta situação como tentativas de entrar num prédio diretamente pela janela do 15o. andar em lugar de entrar pelo térreo e ir subindo andar por andar, com muitos grupos querendo ficar somente com a orientação de roshis visitantes, sem passar pelo trabalho de base, que é feito com o acompanhamento diário de instrutores treinados... Ainda não existe cadeira universitária de estudos budistas no Brasil, muitos textos importantes ainda não foram traduzidos para o português, temos poucos professores qualificados – especialmente os qualificados academicamente, e, consequentemente, temos muito trabalho pela frente. Tendo isto em mente, é a nossa boa fortuna poder receber a visita do Professor Joaquim Shaku Shoshin Monteiro, monge da tradição Terra Pura Japonesa, e doutor em Estudos Budistas pela Universidade de Komazawa, no Japão. Ele estará em Porto Alegre pelo terceiro ano consecutivo para ministrar aulas teóricas sobre os ensinamentos de Buda para o nosso grupo. Em fevereiro, o professor Monteiro dará seguimento ao estudo da Psicologia Budista e da Consciência, no retiro que a nossa Sanga realizará no período do feriado de Carnaval.
Mais informações:
http://aguasdacompaixao.wordpress.com/
http://monjaisshin.wordpress.com/

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